onde nos leva a arte

sábado, 30 de agosto de 2008

É tortura

Mais um ano se passa e tudo continua impune. Matam-se touros. Mas não é para comer, para matar a fome àquela pobre gente que, coitada, tem de se entreter com alguma coisa. É para se divertirem. É isso, para se divertirem. Isto, eu tenho a certeza, não é arte, nem cultura.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Enquanto

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
presuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossados pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer e o mais que não se diz por ser
verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA


António Gedeão


Não me vou debruçar muito sobre António Gedeão uma vez que todos conhecem, melhor ou pior ou pelo menos de nome, este senhor. Com os leitores deste blog gostaria de partilhar duas ou três coisinhas que irão clarificar o porquê deste poema surgir aqui: há uns anos atrás, agora nem tanto, lia muita poesia... muita mesmo. Contudo não podia escapar aquela cegueira da adolescência que tanto nos impede de ver tudo e saborear tudo plenamente. Gedeão estava nesta área negra: claro que conhecia a "Pedra Filosofal" (essa forma de vida), mas o autor, não o sujeito poético, surgiam aos meus olhos de adolescente com toda a frieza do seu porte de cientista.

Agora, passados tantos anos desde que a poesia se sublimou e silenciou em mim, encontro num blog de um amigo mais um poema deste senhor. E é agora que tudo faz sentido: por vezes, para mantermos o nosso calor interior temos de ter uma casca fria... lei da sobrevivência.

Neste caso acho que conseguimos retirar duas "lições" válidas deste fenómeno artístico:

1- vê tudo o que conseguires e aprende, que hoje em dia a sabedoria é menosprezada;
2- não deixes que o silêncio aparente te iluda: todos somos humanos.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Aqui vos lanço um desafio pergunta/resposta:

O que é a Arte?

(alea jacta est...)








Un dimanche après-midi à l'Ile de la Grande Jatte

1884-86; "Um domingo à tarde na ilha Grande Jatte", Art Institute of Chicago, Colecção Helen Birch Bartlett


O Pai do pontilhismo (Georges Seurat, 1859-1891) foi o autor desta obra magnífica que ainda hoje atormenta os historiadores quanto ao seu significado e ao simbolismo das suas personagens. A Grande Jatte é uma ilha no Sena onde pessoas de todas as classes sociais passavam os tempos livres e tinham sexo. O que faz ali um macaco, pela mão da amante bem vestida? E porque pesca uma outra mulher, sozinha, na beira-rio? Porque é que uma técnica que usava traços verticais, diagonais, horizontais e, também, pontos, cujo sinónimo é divisionismo, nos aproxima tanto da tela e parece resguardar todas as histórias lá contidas?
Seurat era tido como misterioso até pelos seus mais chegados amigos e apenas se lhe conhece uma fotografia. Como seria e quem seria Seurat se vivesse nos nossos dias?

domingo, 17 de agosto de 2008

Claude Challe




Não o trouxe, mas...

That's art, folks!

Vagueava na Fnac folheando os livros quando de repente tomo consciência de uma sonoridade que, juro, fez o meu coração bater mais depressa. Deixei os livros para mais tarde e atravessei o corredor, alvoraçado o coração de sentir que estava a descobrir um som novo que não conhecia e com o qual me identificava (tal como um novo amor, quando sentimos algo que nos arrebata de repente, sem aviso e que pode vir a ser amor - ou não).
Deixando o amor para mais tarde, não desprezando, por motivos de puro exercício intelectual, uma qualquer teoria que o sugira forma de arte (o amor uma forma de arte?? impossível, vague, recuso terminantemente!), olhemos para a música que tocava no bar e que de repente me invadiu e disse qualquer coisa de tão bonito que eu lá lhe fui seguir o rasto, do empregado do café ao empregado da livraria.
Foi uma espontânea adesão a que me permiti ter; foi uma das expressões de amor se não estreitarmos o conceito e nos permitirmos vibrar e viver... ( e eu que não gosto muito de reticências nos textos concedo-lhes o poder de me seduzirem neste).
:)
(nem de smilies)

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Posição fetal

A minha forma de dar as boas vindas e receber este novo blog terá palavras de Khalil Gibran. O que ele diz através da poesia, é o que pretendo passar a este espaço de partilha e comunhão. Desejo que este "arco" receba muitas "setas" para projectar... as palavras precisam de espaço para voar ;)


«- Os vossos filhos
não são vossos filhos:
são filhos e filhas da própria Vida.
Vêm por vosso meio
mas não de vós;
e apesar de estarem convosco,
não vos pertencem.
Podeis dar-lhes o vosso amor;
mas não os vossos pensamentos
porque eles têm os seus.
(...)
Sois os arcos, e os vossos filhos
as setas vivas projectadas.»

domingo, 10 de agosto de 2008

A minha "Insustentável Leveza do Ser" cruzada com "Jules et Jim" ou ao contrário

imagem da personagem Sabina (Lena Olin) no filme A Insustentável Leveza do Ser, a adaptação de 1988 para cinema por Philip Kaufman


Se bem me recordo, um colega de turma emprestou-me este livro tinha eu 15 anos. Comprei-o depois, mais tarde, emprestei-o e nunca o reavi. Foi-me oferecido por uma grande amiga em 2002. Um livro que marcou a minha tomada de consciência sobre as relações amorosas, quando ainda vivia na ignorância das mesmas. Uma história sobre pessoas que arriscam sair da fila e partir em direcção ao desconhecido. Não apenas Sabina, aparentemente a mais ousada das personagens, mas também todos os outros, mergulhados numa época confusa de ameaças de guerra e censura. Personagens menos intelectualizadas do que possamos imaginar dão corpo a histórias que, para alguns, nunca passarão de fantasias de vidas diferentes, e, para outros, são um retrato quase fiel das venturas e desventuras vividas no seio de uma sociedade mais ou menos moralista e limitada. Poderá um livro destes ser, meramente, um entretenimento? Poderá ser ignorado? As questões que este romance levanta são bem mais do que as respostas. Gostaria de aproveitar a deixa para vos falar de uma pequena teoria pessoal e perfeitamente transmissível (haja quem tenha percebido o mesmo que eu e talvez há mais tempo). Encontrei alguns paralelos entre a história de Kundera e o filme de 1962 realizado por François Truffaut, Jules et Jim. Em vez de vos maçar com um texto teórico deixo-vos as palavras, nomes próprios e conceitos abordados por Truffaut e mais tarde por Kundera (não será difícil pela cronologia perceber quem se inspirou, e muito bem, em quem):

- Tomas (Catherine, no filme de Truffaut interpretada por Jeanne Moreau, numa sequência logo no início do filme decide vestir-se de homem e sair com Jules e Jim para ver até que ponto as pessoas na rua a confundiam de facto com um homem. Esse "disfarce" chama-se Tomas, o nome de uma das principais figuras do livro de Kundera);

- Tereza é nome da mulher de Tomas em Kundera e foi uma das paixões de Jules ("la locomotive") antes de conhecer Catherine;

- Sabina (o nome de uma das personagens femininas do romance de Kundera e nome da filha de Catherine e Jules, no filme de Truffaut);

- o chapéu de coco que aparece estrategicamente nas duas histórias (mais explorada a sua simbologia no livro);

- o léxico de palavras mal entendidas (no romance aparece-nos como uma tentativa de aproximação aos significados diferentes que Sabina e Franz dão às mesmas coisas e no filme Catherine e Jules discutem sobre o facto de existirem palavras que numa língua são do género feminino e noutra do género masculino);

- o próprio enredo das duas histórias, marcadamente centrado na temática da efemeridade das relações e a entrega a várias paixões em simultâneo;

- Catherine, em Truffaut, é, nas palavras do narrador, "a mulher que se entrega, mentalmente, a um desconhecido" e, para a Sabina de Kundera, "nada há de mais belo do que partir em direcção ao desconhecido".

Aqui estão alguns excertos do romance de Milan Kundera para despertar a curiosidade dos que ainda não o leram ou fazer recordar aos que já o conhecem:

"No mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade."
(...)
"Sentiu então um amor inexplicável por essa rapariga que mal conhecia. Parecia uma criança que alguém pusera numa cesta untada com pez e abandonara às águas de um rio para ele recolher na margem da sua cama."
(...)
"Não poder viver senão uma vida é pura e simplesmente como não viver."
(...)
"Tomas ainda não sabia que as metáforas são uma coisa perigosa. Com as metáforas não se brinca. O amor pode nascer de uma única metáfora."
(...)
"Mesmo presa da maior agitação, nos braços dele, a calma acabava sempre por chegar. Tomas contava-lhe em voz baixa contos que inventava só para ela, pequenos nadas, coisas tranquilizantes ou divertidas que ia repetindo num tom monocórdico. Na cabeça de Tereza as palavras transmutavam-se em visões confusas que a transportavam ao primeiro sonho. Tomas tinha um poder absoluto sobre o seu sono e Tereza adormecia sempre no exacto segundo que ele escolhera para isso."
(...)
"O acaso tem destes sortilégios, a necessidade, não. Para um amor se tornar inesquecível é preciso que, desde o primeiro momento, os acasos se reúnam nele como os pássaros nos ombros de São Francisco de Assis."
(...)
"Poderia dizer que ter vertigens é embriagarmo-nos com a nossa própria fraqueza, mas, em vez de resistir-lhe, queremos abandonar-nos a ela."
(...)
"No chão, ao pé do espelho, havia um velho chapéu de coco enfiado numa cabeça postiça. Baixou-se, apanhou-o e pô-lo na cabeça. A imagem do espelho transformou-se imediatamente; agora, era a imagem de uma mulher em roupa interior, bela inacessível, fria, com um chapéu de coco completamente despropositado na cabeça. Estava de mão dada com um senhor de fato cinzento e de gravata."*
(...)
"Para Sabina, não há nada mais belo do que partir para o desconhecido."

A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera, 1983.

* Magritte?