onde nos leva a arte

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Enquanto

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
presuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossados pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer e o mais que não se diz por ser
verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA


António Gedeão


Não me vou debruçar muito sobre António Gedeão uma vez que todos conhecem, melhor ou pior ou pelo menos de nome, este senhor. Com os leitores deste blog gostaria de partilhar duas ou três coisinhas que irão clarificar o porquê deste poema surgir aqui: há uns anos atrás, agora nem tanto, lia muita poesia... muita mesmo. Contudo não podia escapar aquela cegueira da adolescência que tanto nos impede de ver tudo e saborear tudo plenamente. Gedeão estava nesta área negra: claro que conhecia a "Pedra Filosofal" (essa forma de vida), mas o autor, não o sujeito poético, surgiam aos meus olhos de adolescente com toda a frieza do seu porte de cientista.

Agora, passados tantos anos desde que a poesia se sublimou e silenciou em mim, encontro num blog de um amigo mais um poema deste senhor. E é agora que tudo faz sentido: por vezes, para mantermos o nosso calor interior temos de ter uma casca fria... lei da sobrevivência.

Neste caso acho que conseguimos retirar duas "lições" válidas deste fenómeno artístico:

1- vê tudo o que conseguires e aprende, que hoje em dia a sabedoria é menosprezada;
2- não deixes que o silêncio aparente te iluda: todos somos humanos.

2 comentários:

Joana Amoêdo disse...

António Gedeão faz parte daquelas reverências automatizadas de todos nós, mesmo não lhe conhecendo a obra como deve ser. Este poema é um poema do mundo e obrigada por o mostrares aqui. Sê bem-vindo!

ameixa seca disse...

Há muita humanidade nas palavras deste Senhor e vê-se luta em cada letra. É sem dúvida excelente!
Bem vindo :)