onde nos leva a arte

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A busca da espiritualidade

"Aí está o Templo. Visto assim de perto, do plano inferior em que estamos, é uma construção que dá vertigens, uma montanha de pedras sobre pedras, algumas que nenhum poder do mundo pareceria ser capaz de aparelhar, levantar, assentar e ajustar, e contudo estão ali, unidas pelo próprio peso, sem argamassa, tão simplesmente como se o mundo fosse todo ele uma construção de armar, até às altíssimas cimalhas que, olhadas de baixo, parecem roçar o céu, como outra e diferente torre de Babel que a protecção de Deus, contudo, não logrará salvar pois um igual destino a espera, ruúina, confusão, sangue derramado, vozes que mil vezes perguntarão, Porquê, imaginando que há uma resposta, e que mais cedo ou mais tarde acabam por calar-se, porque só o silêncio é certo. José foi deixar o asno a guardar num caravançarai de bestas que no tempo da Páscoa e outras festas não teria nem espaço para sacudir-se um camelo as moscas com o rabo, mas que nestes dias, passado o prazo do recenceamento e regressados os viajantes às suas terras, não tinha mais que a sua ocupação normal, neste momento, aliás, bastante diminuída em virtude da hora matutina. Porém, no Pátio dos Gentios, que rodeava, entre o grande quadrilátero das arcadas, o recinto do Templo propriamente dito, havia já uma multidão de gente, cambistas, passarinheiros, marchantes que vendiam borregos ou cabritos, peregrinos que sempre vinham por um motivo ou outro, e também muitos estrangeiros aqui trazidos pela curiosidade de conhecer o templo mandado construir pelo rei Herodes, de que em todo o mundo se fala. Mas sendo o pátio o que era, aquela imensidão, alguém que se encontrasse do lado oposto não pareceria maior que um minúsculo insecto, como se os arquitectos de Herodes, tomando para si o olhar de Deus, tivessem querido sublinhar a insignificância do homem perante o Todo-Poderoso, mormente em se tratando de gentios. Porque os judeus, se não vêm apenas a passear como ociosos, têm no centro do pátio o seu objectivo, o centro do mundo, o umbigo dos umbigos, o santo dos santos. Para lá vão caminhando o carpinteiro e a sua mulher, para lá vai sendo levado Jesus, depois de ter seu pai comprado duas rolas a um comissário do templo, se a designação é apropriada para quem serve o monopólio deste religioso negócio. As pobres avezinhas não sabem ao que vão, embora o cheiro de carne e de penas queimadas que paira no ar não devesse enganar ninguém, sem falar de cheiros muito mais fortes, como o do sangue, ou o da bosta dos bois arrastados para o sacrifício e que de premonitório medo se borram desgraçadamente. José é que leva as rolas, aconchegadas no côncavo das suas grossas mãos de obreiro, e elas, iludidas, dão-lhe de pura satisfação, umas bicadas suaves nos dedos, encurvados em forma de gaiola, como se quisessem dizer ao novo dono, Ainda bem que nos compraste, contigo queremos ficar. Maria não dá por nada, agora só para o filho tem olhos, e a pele de José é demasiado dura para sentir e decifrar o morse amoroso do casal de rolinhas."

Saramago, José, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Edição Círculo de Leitores, Novembro 1991

Boas noites!

Com este excerto começo o meu segundo post neste espaço.
Este Outono deixou-me com vontade de reler alguns dos livros que tinha cá por casa. E como o caminho da vontade à acção, normalmente, é pequeno, cá está o resultado.
Contra a argumentação de muitos que afirmam que "reler é perder tempo", eu afirmo que "reler é redescobrir e aprofundar". Isto tem-me acontecido, especialmente neste livro.
Penso que nenhum dos leitores deste blog precise de ser elucidado sobre o peso que esta obra teve na vida de Saramago. Não raras vezes os escritores são perseguidos pelo que escreve, mas raras são as vezes em que essa perseguição é movida pela igreja e pelo poder político... pelo menos não é comum no século XX.
Criticada pela igreja, recusada pelo Ministro da Cultura da altura, foi a celeuma criada à volta dela que precipitou o exílio forçado do seu autor em Lanzarote.
Na primeira leitura que fiz não compreendi claramente os motivos que levaram a tal exagero por parte dos poderes seculares e religiosos. Com esta segunda leitura torna-se mais claro, mas ainda assim intolerável. Compreendo que, para algumas pessoas, uma abordagem humana e despida de considerações supra-humanas da figura de Jesus, seja motivo de revolta; compreendo que a ironia feroz que escorre de muitas passagens dedicadas à igreja, a entidade, por assim dizer, económica, fundada no gesto desse tal Jesus, deixe muita gente chocada com a impiedade desse comuna; compreendo também que certos ministros se rendam a alas mais duras que gostam de silenciar qualquer foco de pensamento diverso - sim, ainda acontece.
Mas em nenhum destes motivos está presente o valor literário desta obra. Neste Evangelho, temos um Jesus homem, com dúvidas e medos de homem, que vê o seu destino a ser degladiado entre Deus e o Diabo que tentam aumentar as fronteiras das suas influências. Jesus, o peão de uma manobra de marketing divina. A obra literária preenche o hiato deixado por Jesus filho de Deus. Este é o homem que cresce e compreende o mundo; que se deixa entregar a Deus, à ascenção divina, e ao Diabo, ao amor perfeito e carnal por uma prostituta de Magdala. Acima de tudo, entre ironia e até um sarcasmo feroz, o que se pode ler no subtexto da obra é que quase todas as personagens que surgem são reabilitadas pelo amor - o amor que nos une enquanto filhos do mesmo deus menor. Jesus é um deus sem aura; um homem; um herói dos tempos antigos em que os deuses eram feitos à nossa imagem e não o contrário.
A prosa de Saramago está plena de força neste livro... mas tudo isto já foi dito por outros críticos melhores que eu. Falo como leitor... e um bem longe do sistema religioso ainda vigente. Com passagens plenas de força, que nos tocam pela forma sublime com que falam dos mais complicados sentimentos humanos, saramago consegue, digo eu, aproximar-nos de uma espiritualidade que de bacoca não tem nada- e que cada vez mais está afastada das letras portuguesas.
Jesus é humano, demasiado humano nesta obra. É alguém que tem de levar e cumprir um destino que nunca pediu e que dificilmente aceita. Somos todos nós a comer do pão nosso de cada dia.

Fiquem bem!

2 comentários:

vague disse...

De Saramago li Memorial do Convento e As intermitências da morte. Nada mais, não é um autor que me 'puxe', mas não lhe nego o mérito (também...quem sou eu para o fazer?) , apenas constato uma falta de empatia. Pq há escritores q são mto bons mas q não fazem clic connosco. Não sei se é o caso, se é bom ou não.
Acho q é um escritor daqueles q ou se gosta mto ou se é indiferente. Eu sou basicamente indiferente mas gosto sempre de apreciar a paixão que alguém tem por alguma coisa, seja um livro, uma obra de arte, um desporto favorito. Acho q é isso q nos faz viver!

:)

Joana Amoêdo disse...

É simplesmente um dos maiores escritores e criadores de histórias que existiu até hoje.